terça-feira, 8 de novembro de 2016

A ESQUERDA BRASILEIRA E AS ELEIÇÕES NOS EUA, por Fernando Pacheco

A esquerda brasileira em geral tem grandes dificuldades ao se posicionar sobre as eleições americanas. As marcas das relações dos EUA com ditaduras e a grande influência política que esse país exerceu e exerce sobre a América Latina contribuem para tornar essa decisão ainda mais complicada. Na disputa de hoje, vejo duas posições surgindo entre os nossos com as quais discordo.

A primeira é o alheamento e a descrença, de dizer que os dois candidatos representam o mesmo tipo de pensamento conservador e que tanto faz, ou mais que isso, que nós no Brasil não devíamos nos ocupar tanto disso.

A segunda, cuja maior expressão talvez esteja nas posições de Zizek, Assange e Greenwald, sustenta que Trump poderia desorganizar o establishment por dentro e precipitar uma crise maior que reduziria o poder dos americanos e de suas corporações no mundo, ou ainda que em comparação com o histórico de Hillary, os EUA teriam um papel de menor intervencionismo e posições menos globalizantes, por assim dizer.

Discordo frontalmente dessas duas posições, pelas cinco razões que apresento aqui:

1. Os EUA ainda são importantes no mundo em múltiplas dimensões da presença dos processos americanos nas dinâmicas nacionais. Isso vale para a economia, o comércio, o poder militar, a cultura e as dinâmicas sociais, em todos esses campos, é possível delimitar áreas de influência e relações de impacto diretas entre o que acontece lá e o que se passa no resto do mundo.

2. A ascensão de Trump não significaria a desorganização do sistema por dentro, mas mais um movimento, brusco, de tomada de poder pelos segmentos proto-fascistas da direita mundial. Essa aposta que o caos levaria a um cenário pré-revolucionário de decadência do capitalismo pelo centro é ingênua e perigosa. Por mais que não tenha o apoio do Comitê Nacional Republicano, Trump apenas colocou US$ 66 milhões de sua fortuna pessoal na campanha que deve ultrapassar US$ 1 bilhão. O resto dos recursos vem de Comitês de Arrecadação inchados de recursos dos grandes financiadores de campanha que o terão em rédea curta, e não me parece que esses financiadores permitirão a construção de um cenário pré-revolucionário. Não que Clinton não tenha os mesmos apoios, mas é certeza que Trump não representa a ruptura sistêmica, a ruptura dele é apresentar uma face agressiva e radicalizada de um conservadorismo que vem sendo alimentada desde a criação do Tea Party.

3. A eleição de Hillary, por outro lado, pode não representar ruptura, mas é sem dúvida um freio eficaz para parte substancial da agenda conservadora, especialmente em relação aos direitos políticos e sociais. De saída significaria que a indicação de um juiz para substituir o conservador e agora defunto Antonin Scalia na Suprema corte estaria condicionada por posições sobre questões que são caras para a esquerda ocidental, como interrupção voluntária da gravidez, direito das mulheres, encarceramento em massa, guerra às drogas, entre outros. Não quer dizer mudança da água pro vinho, mas o cenário mais possível com Clinton é de que pelo menos não haja retrocesso, Trump já se comprometeu a fazer exatamente oposto. Isso é algo que tem direta relação com o Brasil, que vive uma ascensão conservadora, o enfraquecimento da agenda conservadora no centro, deixa a nossa direita em descompasso com os avanços mundiais. Uma reafirmação do direito ao corpo das mulheres nos EUA reforça a sensação geral, e não só da esquerda, de que nosso congresso promove ideias medievais. A legalização do uso recreativo da maconha em expansão nos territórios dos EUA transforma a foto do nosso ministro de justiça destruindo um pé de maconha em uma charge cada vez mais risível (quer dizer, eu tenho a certeza de que daqui a 20 anos essa foto vai parecer ridícula para a maioria dos brasileiros, mas o processo americano pode reduzir esse prazo pra 10 ou 5 anos). Ainda, é possível dizer que a continuidade dos democratas pode ser um freio ao movimento de inchaço do aparato de repressão e segurança pública, e a posição do FBI sobre Clinton na última semana mostra claramente que esta não representa os interesses do pessoal “da lei”.

4. Tenho certeza de que o histórico de Hillary em algumas questões é um dos fatores que leva muitos a não acreditar que ela possa ser uma boa notícia para esquerda. No entanto, é preciso ver em perspectiva o processo das primárias e de que maneira isso impactou o discurso e a agenda dos democratas na eleição. O fato de os jovens millenials serem uma força em ascensão e progressista no seio do partido democrata levou Clinton a assumir parte da agenda desse segmento, recuando em suas posições históricas, e nisso sobram exemplos. No traço que mais nos afeta, o intervencionismo internacional, Hillary praticamente passou a campanha inteira se desculpando pelos erros cometidos na Síria e na Líbia. Na área do comércio, é possível dizer o mesmo, depois de dizer que o Tratado Transpacífico era o “padrão ouro” dos acordos internacionais de comércio, a candidata democrata voltou atrás e já disse textualmente que os Estados Unidos só assinarão se as condições para os trabalhadores americanos forem mais favoráveis (como isso afeta as condições para investidores na Ásia e América Latina, ouso dizer que esse acordo dificilmente verá a luz do dia até 2020, se ele se concretizar). Um último assunto é relacionado a um tema diretamente ligado à esquerda, que é a equidade e justiça tributária. O sucesso de Bernie Sanders nos primeiros momentos das primárias obrigou Hillary a defender mais impostos para os mais ricos. Se ela conseguir implantar isso, François Hollande não estará mais tão sozinho nessa conversa, e isso alimenta o debate mundial sobre o tema, e pode (aqui assumo que exagero na esperança) desinterditar o tema no Brasil.

5. Para o Brasil, especificamente, há uma armadilha de percepção. Hoje o Kennedy Alencar escreveu um texto dizendo que o Governo Temer torce por Hillary. Há uma mistura de coisas aí, de um lado a relação histórica da família Clinton com FHC e por extensão com os tucanos, de outro o interesse do governo em que a orientação do governo americano seja a expansão do comércio internacional e a internacionalização da economia, o que representaria oportunidades de crescimento para o Brasil. Mas a convergência desses dois interesses pode ser apenas conjuntural, pois há contradições subjacentes entre dois segmentos. É público que os tucanos desejam maior proximidade com os americanos, acordos comerciais de ampla abertura, e vendas de ativos. Qual acordo? Absolutamente qualquer acordo, a elaboração dos tucanos é ter essa aliança como um fim, as outras políticas são apenas atalhos. Mas não acho que isso seja válido para todo o governo, principalmente na agenda econômica e social. Um acordo de ampla abertura poderia significar o fim de qualquer política de refresco fiscal para a indústria nacional. Primeiro porque isso é pré-requisito dos acordos comerciais modernos, países liberam cotas e tarifas, mas proíbem “ajudinha” ao empresariado nacional, pra igualar as “condições de competitividade”. Segundo, porque a inclinação e o horizonte de possibilidades de política fiscal do Brasil são inclinados a não abrir mão de receita e limitados pela produção de déficit (como a PEC 55 não fala de receita, só de despesa, qualquer medida de renúncia de receita ampliaria o déficit). Então, se for o caso de nosso governo assinar um tratado comercial liberando tarifas de importação, o Ministério da Fazenda seria forçado a rever subsídios concedidos aqui no Brasil de um jeito ou de outro, mesmo que isso não esteja previsto no acordo. Eles podem até dizer que Papai Noel vai chegar e que os investidores americanos vão inundar o Brasil de dinheiro se houver mais abertura, mas as pernas dessa mentira são curtíssimas. Isto tudo dito, acho que não é correto apostar em Trump só porque o Governo Temer não gosta dele. É uma lógica infantil de que o inimigo do meu inimigo é meu amigo, o que não é válido nesse caso. Nosso governo vai enfrentar sérios problemas internacionais, especialmente porque tem desafios grandes e planos frágeis que dependem substancialmente de uma esperança que não tem amparo na realidade.

Por esses motivos, acredito sim que devemos acompanhar atentamente o que acontece em Washington hoje e nos próximos dias e que com certeza não devemos torcer pelo proto-fascista Donald Trump. Como considero que a indiferença não é uma posição política muito favorável para a esquerda, acredito que um nível de torcida de baixo entusiasmos pelos democratas é sim um posicionamento válido.


Fernando Pacheco, 30, é economista e foi assessor internacional da Secretaria Nacional de Juventude, assessor da Casa Civil do Governo da Bahia e coordenador de relações internacionais da Juventude do PT.


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